04 Setembro 2010
Reconhecer a alteridade dos índios em sua condição de indivíduos e também de povos é um bom motivo para considerar Bartolomeu de Las Casas como “o primeiro teólogo e filósofo da libertação latino-americana”, acredita o filósofo italiano Giuseppe Tosi. Em sua opinião, “a compreensão que Las Casas adquiriu do encontro/desencontro, descobrimento/encobrimento entre o Velho Mundo e o Novo Mundo é uma das mais extraordinárias da nossa história”. E continua: “pela compreensão e o reconhecimento da alteridade oprimida, humilhada, ocultada dos povos indígenas, e pela relação constante entre a teoria e a práxis libertadora que ele soube realizar, podemos a justo título considerar Las Casas como um autêntico filósofo latino-americano da libertação”. Tosi pontua que ele conseguiu conjugar “o conhecimento da tradição e da linguagem filosófica do seu tempo com as trágicas e dramáticas questões do Novo Mundo, elaborando assim um pensamento ao mesmo tempo universal e autenticamente latino-americano”. As afirmações fazem parte da entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line.
Giuseppe Tosi é graduado em Filosofia pela Universidade Católica do Sagrado Coração de Milão, é mestre em Sociologia Rural pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB, doutor em Filosofia pela Universidade de Pádua, e pós-doutor pela Universidade de Firenze, ambas na Itália. Leciona na UFPB e é autor de La Teoria della schiavitù naturale nel dibattito sul Nuovo Mondo (1510 - 1573). Veri Domini o Servi a natura? (Bologna: Edizioni Studio Domenicano, 2002) e organizador de Direitos humanos: história, teoria e prática (João Pessoa: Editora Universitária UFPB, 2005) e de Bartolomé de Las Casas: De Regia Potestate (Bari-Roma: Laterza, 2007).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Quais são as ligações entre os direitos humanos e a segunda escolástica espanhola?
Giuseppe Tosi - Os estudos que se dedicam à reconstrução da evolução histórica das doutrinas dos direitos do homem evidenciam uma genealogia quase “canônica”, que inicia com a Magna Charta Libertatum de 1215, passa pelo Bill of Rights da Revolução Gloriosa de 1688 para chegar à Declaração do Estado da Virgínia de 1777, e finalmente à Déclaration des droits de l’homme e du citoyen da Revolução Francesa de 1789.
No entanto, tais reconstruções passam ao largo do período de transição entre a concepção objetiva do direito natural, típica de grande parte da tradição antiga e medieval, para a concepção subjetiva dos direitos naturais. Esta passagem acontece entre os séculos XV e XVI e tem as suas raízes remotas na jurisprudência da Idade Média, nas posições assumidas pelos teólogos franciscanos e nominalistas, no debate sobre a pobreza do século XIV e XV, sobretudo a partir de Guilherme do Ockham e, finalmente, nos teólogos da Escola de Salamanca, sobretudo a partir do debate sobre o Novo Mundo na primeira metade do século XVI.
IHU On-Line - Em que consiste a contribuição dos escolásticos de Salamanca para a história conceitual dos direitos humanos?
Giuseppe Tosi - Para o jusnaturalismo antigo, que havia dominado a história do conceito de direito natural desde Aristóteles até o final do século XV, o direito (díkaion em grego, ius em latim) era definido primariamente como uma relação objetiva, fundada não sobre os gostos e as preferências dos indivíduos, mas sobre o que objetivamente era devido nas relações entre os sujeitos, a partir de uma ordem natural e social que governava o mundo e que era legitimada por Deus, ordem com a qual os sujeitos deviam se conformar, cada um ocupando o seu lugar. Na verdade, cabiam aos súditos mais deveres para com a sociedade do que propriamente direitos.
A partir do fim da Idade Média e do início do Renascimento, o direito (ius) tende a ser identificado com o domínio (dominium), que, por sua vez, é definido como uma faculdade (facultas) ou um poder (potestas) do sujeito sobre si mesmo e sobre as coisas. Inicia assim uma concepção que desvincula e liberta progressivamente o indivíduo da sujeição a uma ordem natural e divina objetiva e lhe confere uma dignidade e um poder próprio e original, limitado somente pelo poder igualmente próprio e original do outro indivíduo, sob a égide da lei e do contrato social. É a passagem do direito para os direitos!
IHU On-Line - Como esta doutrina foi aplicada à questão dos povos indígenas do Novo Mundo?
Giuseppe Tosi - Francisco de Vitória, na famosa Relectio de Indis, de 1537, faz uma afirmação capital a respeito dos direitos dos índios, naquela época chamados de bárbaros: “Sine dubio barbari erant et publice et privatim ita veri domini, sicut christiani; nec hoc titulo potuerunt spoliari aut principes aut privati rebus suis, quod non essent veri domini.” (“Sem dúvida esses bárbaros eram, do ponto de vista do direito público e privado, verdadeiros senhores, como os cristãos; e por este motivo não podiam ser despojados dos seus príncipes e privados dos seus bens, como se não fossem verdadeiros senhores/donos.”)
Faço duas observações importantes sobre esta frase:
a) Vitória não fala de homines, mas de domini: a questão não é a humanidade dos indígenas, que nenhum teólogo sério colocou em questão; prescindindo de qualquer outro argumento, se o índios não tivessem alma, cairia por terra a principal justificativa da conquista, a evangelização. O que estava em jogo não era a humanidade dos índios, mas o seu dominium, ou seja, a legitimidade do poder político dos regimes indígenas, e a legitimidade da propriedade dos seus bens.
b) Sobre esta questão Vitória é categórico e assimila os bárbaros aos cristãos, introduzindo, assim, um argumento de reciprocidade de direitos muito significativo e, ao mesmo tempo, condenando a destituição dos legítimos senhores políticos e a apropriação indevida dos bens dos indígenas. Sem tais justificativas, o domínio espanhol sobre as Índias ficaria sem nenhum fundamento religioso, ético ou político.
IHU On-Line - Qual é a importância de Bartolomeu de Las Casas na formação da identidade latino-americana?
Giuseppe Tosi - Bartolomeu de Las Casas (1485-1567), que era dominicano como Vitória, aplica de maneira rigorosa o princípio de reciprocidade dos direitos que Vitória introduz, levando-o até as últimas consequências. Em polêmica com Juan Ginés de Sepúlveda, que era o intelectual orgânico dos conquistadores e com o qual terá uma famosa disputa na cidade de Valladolid em 1550 e 1551, Las Casas defenderá as seguintes teses:
a) Todos os homens, enquanto criados a imagem de Deus (tradição bíblica), e enquanto animais racionais (tradição aristotélica) são livres por sua própria natureza: por isso rejeita a doutrina aristotélica da escravidão natural que era aplicada por Sepúlveda aos índios.
b) Como os mestres de Salamanca, Las Casas afirma que o imperador não pode ser considerado dono das propriedades dos indivíduos (dominus super rebus singulorum) mas somente governante político, isto é, ele exercita somente uma jurisdição (iurisdictio). Mas, a diferença deles, Las Casas admite o poder temporal do Imperador e o poder espiritual do Papa (in ordine ad spiritualia) sobre o mundo inteiro. Las Casas permanece ancorado na visão universalista medieval dos dois poderes. Esta visão não contrasta com o reconhecimento da plena legitimidade do dominium indígena, porque Las Casas imagina o poder do imperador como uma autoridade suprema que governa sobre uma federação de estados e nações indígenas regidas pelos seus legítimos e originários senhores, que se submetem ao imperador somente quanto aos tributos, recebendo em troca proteção contra o cobiça dos conquistadores e encomenderos.
c) Para responder a Sepúlveda, que considerava os indígenas bárbaros e selvagens, elabora na Apologia uma tipologia de quatro tipos diferentes bárbaros que é considerada um dos primeiros exemplos de “etnologia comparada”.
d) Não admite os pecados contra a natureza e a infidelidade como causa de guerra justa contra os índios, mas procura entendê-los como manifestações culturais e expressões de uma forma de religiosidade que só podem ser modificadas com o tempo e persuasão, e nunca com a força.
e) Não admite nenhum tipo de violência ou de guerra e propõe um único modo para a evangelização: a pregação pacífica que tentou, de vária maneiras, levar a cabo com a ajuda de outros pregadores. Aliás, será o único a justificar as guerras de legítima defesa dos índios contra a violência dos conquistadores.
IHU On-Line - Há relação entre a Segunda Escolástica e a Teologia da Libertação?
Giuseppe Tosi - Podemos considerar Bartolomeu de Las Casas como o primeiro teólogo e filósofo da libertação latino-americana devido ao reconhecimento da alteridade dos índios enquanto indivíduos e enquanto povos. Nesta passagem crucial e trágica da história ocidental, a figura de Las Casas, não somente pelo seu valor moral, mas também pela sua originalidade e força teórica, é um dos pontos mais altos da relação entre “nós” e “os outros”. A compreensão que Las Casas adquiriu do encontro/desencontro, descobrimento/encobrimento entre o Velho Mundo e o Novo Mundo é uma das mais extraordinárias da nossa história. Na obra de Las Casas se manifesta um dos pontos mais altos da “descoberta que o eu faz do outro”, ponto que raramente foi alcançado na consciência moderna a ele posterior. Com efeito, a teoria que Las Casas tanto combateu, da superioridade de uma civilização sobre as outras, se consolidará nos séculos seguintes através das várias formas de eurocentrismo, alimentado pelas ideologias do progresso, do racismo, do (sub) desenvolvimento, que acompanham o longo processo através do qual a história da Europa se torna história do mundo.
Pela compreensão e o reconhecimento da alteridade oprimida, humilhada, ocultada dos povos indígenas, e pela relação constante entre a teoria e a práxis libertadora que ele soube realizar, podemos a justo título considerar Las Casas como um autêntico filósofo latino-americano da libertação. Com efeito, ele soube conjugar o conhecimento da tradição e da linguagem filosófica do seu tempo com as trágicas e dramáticas questões do Novo Mundo, elaborando assim um pensamento ao mesmo tempo universal e autenticamente latino-americano.
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Bartolomeu de Las Casas, primeiro teólogo e filósofo da libertação. Entrevista especial com Giuseppe Tosi - Instituto Humanitas Unisinos - IHU